Forró no Mundo-Sertão
- Revista de Turismo PB
- 7 de jul.
- 6 min de leitura
Depois de um cansado dia de pesquisa, subindo e descendo serra, deu seis da tarde de um sábado e o que eu mais desejava era tomar um banho, comer um bom prato de cuscuz com leite e ovo de capoeira, saboreando um quente e forte café e dormir naqueles aposentos para no outro dia poder continuar as prospecções bem inteiro e descansado, até que, de calção, sem camisa, conferindo as fotografias do dia ouço uma voz:
– Thomas, Thomas, podes vir aqui na sala?
Era a voz do velho Professor Rosa. Saudoso Paulo Rosa.
– Nos chamaram ali para um forró, vamos?
Eu poderia negar, tergiversar, não querer. Mas, sou historiador, um cientista social, alguém que observa a vida, o cotidiano, as pessoas e as coisas. Tomei um fôlego e vi uma grande oportunidade em saber como era um forró, ou como dizia meu velho amigo Biliu de Campina: um samba, um tarrabufado, um forrobodaço, uma forrobodança, aquela festança que só o Mundo-Sertão sabe como é. Eu já tinha participado de tantas festas, soltado balões e pulado fogueiras em meu Cariri... Tinha uma expectativa de festa naqueles confins do sul dos Cariris Velhos, terras inóspitas, chão pedregoso, de vegetação espinhenta, de um céu límpido e maravilhoso. E fui. Estava eu em Camalaú, cidade bucólica, pequena, bonita e singela, de um povo caridoso, generoso e simples, como diz o amigo Padre João Jorge Rietveld, povo que não tem nada, mas reparte com você aquela coisinha que tem.
Nos solavancos de um Toyotão ampliado, acredito que feito na região de Santa Cruz do Capibaribe-PE, andei na faixa de uns quinze quilômetros sob o céu do meu Mundo-Sertão. Pela janela, olhava o horizonte, a cada metro que andávamos, sentia aquele cheiro gostoso de mato, marmeleiros e juremas que enfeitavam os aceiros das estradas, com aqueles garranchos que “arranham pensamentos” como disse o compositor Maciel Melo. Daí chegamos em um território lindo e mágico, a saber: No meio de quase nada, para onde olhávamos não havia um só bico de luz no horizonte. Deus tomava conta de nós.
E finalmente chegamos a festa.
Vou tentar narrar para vocês: Um terreiro plano, onde funcionou uma antiga sede de fazenda, se bem me recordo, o nome é Caiçara, deu logo a ideia de que ali próximo tinha um riacho, mesmo que temporário. Nos arredores, três fios de gambiarra, bicos de luz amarelas, charmosas e um som vindo lá de dentro da casa, era um forró, como dizemos no Cariri, comendo no centro. Desci da Toyota, pisei no terreiro alumiado, observei o ambiente tão singelo e adentrei. Estava curioso a saber como era aquela festa em um cômodo de casa. Subi três degraus, justamente a altura da sapata da casa, e me surpreendi com o que vi. Primeiro que a casa não possuía paredes internas, ou melhor, a irregularidade do piso e dos mosaicos denunciavam antigos cômodos que não mais existiam. Também não tinha telhado, nem o madeiramento existia. Lá dentro, no equivalente do fogão à lenha da cozinha, um sanfoneiro de sorriso frouxo abria o fole da sanfona como a balançar uma saia de chita em uma mulher. Cantava solto feito cigarro em boca de bêbado. O “triangueiro” era um fungado da mulesta, já o zabumbeiro parecia aquele inspetor de quarteirão, com um farto bigode e aparência sisuda, nem parecia estar gostando da festança.
O poeirão levantava, o barulho das chinelas a cada passo, parecia marcar passo no meio do salão. Chego perto do cuidador da porta e pergunto como se faz ali para tomar uma lapada de cachaça e ele responde:
– Aqui dentro só se dança! Quer beber? É lá no lado de fora.
Já tinha dançado umas cinco músicas com uma morena dos cabelos negros e compridos, ela me olhava de baixo para cima, encabulada que era. Seu sorriso era lindo, dava um contorno sem igual ao seu rosto por onde o vento deixava o cabelo balançar como uma cortina ou véu, escondendo o que queria esconder. Seu cangote cheirava ao fogo do ferro que passou seu vestido de chita. Cheiro amatutado, uma riqueza!
Solto a morena e vou lá fora. Ao lado da casa, uma barraca improvisada vendia cerveja à temperatura natural, que no alto daquele planalto batia uns 25ºC, vendia também uma cachaça em uma garrafa de vidro esverdeado sem rótulo, uma brejeira da boa vinda da região do brejo. Pedi uma lapada e ganhei uma piabinha assada. Agradecido, troquei algumas palavras. A saber da casa sem telhado, perguntei ao vendedor como faziam em momento de chuva, ele passou a mão na boca, sorriu e disse: – Não, não moço, por essas bandas não chove não! Sorrimos e voltei ao salão feliz sob o luar do Mundo-Sertão.
Mitos e lendas da PB: relato
Estava lendo o artigo da escritora cajazeirense Mariana Moreira publicado no primeiro caderno d’A União com o título ‘Nossos fantasmas’.
Foi no dia 10 de maio de 2025. Ela comentou sobre como permanecem na modernidade o sobejo de velhas práticas supersticiosas como se benzer ou desconjurar espíritos no exato momento em que se observa a passagem de um redemoinho, perpassando por práticas do uso de plantas como pinhão-roxo, comigo-niguém-pode e arremata: “Mas, como acreditar não arranca pedaços, vamos, em nosso cotidiano, repisando velhas práticas e, entre e-mails, iPods, redes sociais, cultivamos nossos velhos e queridos fantasmas e nossas estimadas visagens. Mesmo que o claror das luzes elétricas lhes roube os esconderijos”.
A leitura me repostou a um fim de semana em que passei na praia de Lucena-PB. Depois de uma manhã toda me banhando no mar, ou “saigâno (salgando) a matéria” como diz meu amigo caririzeiro Agenor, voltei para a tranquilidade de casa e busquei disfarçar o calor na piscina. Entre um mergulho e outro, me fizeram companhia dois pré-adolescentes, meu primo Tiago e um meio sobrinho Kaleb. Eles logo me indagaram se eu sabia de alguma história “massa”, legal no linguajar deles. Naquela semana tinha publicado uma crônica nesta coluna, mais uma da série ‘Mitos e lendas da Parahyba’ e, na oportunidade, falei sobre o ‘papafigo’. Daí comecei a falar sobre o que escrevi e eles ficaram atentos. Em seguida, ouvi um assovio vindo lá de fora e me lembrei de imediato da Comadre Florzinha e comecei a falar sobre essa lenda. Em poucos instantes, precisei sair para comprar alguma coisa para minha mãe no mercado.
De volta à piscina, retomei o assunto e minha fala foi cortada, pois eles já sabiam daquela determinada história. Comecei outra sobre a mesma entidade mítica e eles revelaram que enquanto eu estava fora, viram no youtube através do smartphone algumas histórias sobre ela e notei um certo desinteresse deles em minha fala. Cá com meus botões, fiquei surpreso e um tanto desconcertado, mas não desisti. Resolvi falar algo original, uma história em que vivi e que jamais eles pudessem encontrar na internet ou em qualquer outro lugar, pois o relato ocorreu comigo, ou melhor dizendo, foi algo que eu vivenciei. Fiz uma introdução dramática para chamar a atenção (e deu certo!), ao mesmo tempo vasculhava as gavetas de minha memória para formatar a história e comecei com aquele assobio vindo de fora.
Meninos, foi assim: em 2008 eu estava em um território inóspito e também fantástico, isso porque era tão distante do núcleo urbano do singelo e pacato município de São João do Tigre, nos confins do extremo sul da Parahyba, que nos restava contemplar o conjunto de serras que emoldurava a divisa com o vizinho Pernambuco. Disseram que lá em cima nasce o Rio Capibaribe, fui lá ver, mas de outra vez eu conto. Estava ali acampado em uma escavação arqueológica de um cemitério indígena, desenterrando marcas do passado e a noite ficavam duas pessoas, o restante no fim da tarde vencia os quase 30km até o pousio na cidade. Vendo o veículo partir e a noite cair, estava tranquilo. Cozinhamos, discutimos sobre o trabalho, conversamos, alimentamos a fogueira e fomos dormir. A certa hora, precisando urinar, saio de minha barraca e caminho até as costadas do abrigo de pedra e antes que me aliviasse, vi uma pequena luz alaranjada variando a intensidade, parecia uma brasa sendo soprada. Com olhar fixo, ouvi um assobio distante ecoando sobre aquele vale do riacho do Mulungú. O assovio cantou mais longe, ecoando na caatinga brava e lembrei de uma fala de vovô: “Quando o assobio é perto, fique tranquilo que ela está longe, mas se o assobio foi longe... pode correr que ela tá em seu encalço. Ela chega na “ponta da unha” que você nem vê”. E... não esperei para ver, alguns metros me separavam do acampamento. Era noite de lua crescente, a visibilidade era muito pouca. Vi mexidos na mata, senti arrepios e acabei espantando um filhote ao que pareceu de onça vermelha.
A noite foi de oração, não consegui dormir. A névoa das primeiras horas da manhã deu conforto e alívio, “o que a noite esconde, o dia revela” e ao amanhecer, contei ao colega, refiz o caminho e fui até uma pedra pontuda no giro de onde a luz brilhou. Nela, encontrei uma piola queimada, tive ali a certeza da presença mítica da Comadre Florzinha. “Eita, como ela é? Tem o olho grande? É baixinha?”; as perguntas me tomaram o dia, assim como as lembranças daquele momento.
Thomas Bruno Oliveira
Historiador e Jornalista - 3372-PB
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